Ortopedia Funcional dos Maxilares e Disfunção Temporomandibular

Artigo publicado no livro ” Nova Visão em Ortodontia e Ortopedia Funcional dos Maxilares” (Outubro-2008)

Introdução

Na especialidade Ortopedia Funcional dos Maxilares (OFM), embora venha sendo estudada há muitos anos, os seus recursos e princípios terapêuticos próprios ainda não chegaram ao conhecimento da maioria dos cirurgiões-dentistas. Após o reconhecimento da especialidade, este quadro vem mudando, permitindo uma melhor difusão da ortopedia funcional na comunidade odontológica.

A OFM contemporânea encontra-se em amplo desenvolvimento. Os recursos terapêuticos – aparelhos ortopédicos funcionais (AOF) – disponíveis são os mais diversos possíveis e se encontram divididos em seis grandes grupos, com uma soma total de mais de cem tipos de aparelhos.

Dentre as possibilidades terapêuticas da OFM, está a de atuar prevenindo e/ou tratando as Disfunções Temporomandibulares (DTMs), principalmente, nos casos em que o problema oclusal é um fator agravante para o desenvolvimento desta disfunção. Por suas características e princípios próprios, o tratamento ortopédico, seja por uso de aparatologia ou não, permite ao final do tratamento a obtenção de uma oclusão funcional e estável, com um relacionamento maxilomandibular harmônico e com as cabeças da mandíbula bem posicionadas na cavidade articular.

Segundo Okeson, a disfunção temporomandibular é um termo amplo que compreende vários problemas clínicos que envolvem a musculatura da mas­tigação, a ATM e estruturas associadas ou ambas.

Estudos demonstraram uma prevalência maior de DTM no sexo feminino e na faixa etária entre 21 e 40 anos.  Houve uma época em que a oclusão era considerada como a causa primária de DTM. Acreditava-se que todo o desarranjo no aparelho mastigatório era promovido, principalmente, pelos contatos prematuros e interferências oclusais. Em seguida, considerou-se o fator psicológico como desencadeador da disfunção das articulações temporomandibulares. Atualmente, há consenso na literatura de que a DTM é de etiologia multifatorial, o que justifica a grande dificuldade em tratar este problema.

Não há dúvida de que a oclusão certamente tem um papel fundamental no desenvolvimento de alterações funcionais e morfológicas no aparelho mastigatório.
O aparecimento ou não de sinais e sintomas vai depender da capacidade adaptativa do indivíduo frente às agressões. A partir do momento em que estas agressões ultrapassam a tolerância fisiológica e o sistema entra em colapso, sempre na tentativa de adaptação, os sinais e sintomas da disfunção aparecem.
De acordo com a Academia Americana de Dor Orofacial, as alterações de ordem oclusal que predispõem ao desenvolvimento de sinais e sintomas de DTM são: mordida aberta anterior esquelética, com contato dentário apenas posterior; trespasse horizontal maior que 7 mm; diferença de relação cêntrica para máxima intercuspidação habitual maior que 4 mm; mordida cruzada posterior e 5 ou mais dentes posteriores ausentes.

Caso Clínico

O caso clínico descrito a seguir refere-se ao tratamento de um adulto, do gênero feminino, com mordida cruzada unilateral posterior funcional e disfunção temporomandibular, por meio de aparelhos ortopédicos funcionais. Atualmente, a paciente encontra-se em tratamento, porém, sem sinais da DTM. Trata-se de um caso atípico, envolvendo problemas sistêmicos, ausência de vários elementos dentários, desvio de mandíbula e assimetria facial evidente. O prognóstico é muito desfavorável, levando-se em consideração a idade, as seqüelas da maloclusão e os comprometimentos dentários e periodontais.

Este caso refere-se a senhora de 50 anos de idade, leucoderma, com as seguintes queixas, antes do início do tratamento: dor freqüente no lado direito da face (a mais ou menos 5 anos); impossibilidade de comer do lado esquerdo; vergonha quando mastiga, pois faz “barulho” do lado esquerdo da mandíbula; e “rangimento” dos dentes dia e noite.

Durante a consulta, a paciente relatou ter procurado tratamento odontológico em um centro clínico. Na época, após ter sido examinada, foi encaminhada para fisioterapia para alívio da sintomatologia dolorosa.  Aolongo do tratamento fisioterápico, sentiu alívio das dores por algum tempo, mas estas logo voltavam. Na mesma instituição, foi encaminhada para cirurgia ortognática
com indicação de expansão rápida da maxila. Mas, devido aos problemas sistêmicos apresentados pela paciente, a cirurgia não foi agendada.

No exame subjetivo (anamnese), detectaram-se problemas sistêmicos como insuficiência cardíaca, hipertensão, hipotireoidismo e depressão. Estava sendo medicada com antidepressivo, anti-hipertensivo e antiinflamatório. Disse ter procurado recentemente um cirurgião-dentista, o qual a avisou da impossibilidade de reabilitação protética devido à condição oclusal. No exame clínico postural, observou-se alteração da postura corporal com ênfase na postura da cabeça e coluna cervical. O exame facial evidenciou assimetria facial, evidente principalmente na região dos olhos, ângulo da mandíbula, lábios e mento; perfil facial tendendo a côncavo; altura facial inferior diminuída; selamento labial passivo e padrão facial dolicoprosopo (braquicefálico) (Figs. 1 a 3).

Fig. 1 – Fotografia inicial de frente.

Fig. 1 – Fotografia inicial de frente.

Fig. 2 – Fotografia inicial, perfil

Fig. 2 – Fotografia inicial, perfil

Fig. 3 – Fotografia inicial, perfil direito.

Fig. 3 – Fotografia inicial, perfil direito.

O exame funcional indicou dor na região do músculo masseter do lado direito, durante o movimento de abertura/fechamento; dor à palpação na ATM direita e esquerda; movimentos de abertura e fechamento alterados com deflexão mandibular (ao final da abertura bucal a linha média apresentava-se centrada); interferência oclusais nos movimentos de lateralidade direita e esquerda, sendo que o movimento de lateralidade esquerda era realizado com muita dificuldade – quase inexistente; estalido na região das duas ATMs durante abertura/fechamento e mastigação exclusiva do lado
direito. Após o exame clínico, a paciente enfatizou novamente a queixa da dor no lado direito da face, uma dor do tipo latejante que persistia em torno de uma hora ou mais e que só passava após algum tempo depois de ter tomado antiinflamatório.

No exame clínico bucal, verificou-se de imediato maloclusão do tipo mordida cruzada unilateral posterior do lado direito, com desvio clínico de linha média para o mesmo lado; mordida cruzada também na região dos incisivos lateral e central direito; ausência de muitos elementos dentais; desgaste dentário acentuado de alguns dentes, principalmente do incisivo central superior direito; problema periodontal como mobilidade dentária, extrusão dentária, reabsorções ósseas; lesões na mucosa jugal, provavelmente decorrentes de trauma por mordedura (Figs. 4 a 6).

Fig. 4 – Fotografia inicial intrabucal, vista de frente. Observar desvio de linha média de 4 mm e mordida cruzada do lado direito.

Fig. 4 – Fotografia inicial intrabucal, vista de frente. Observar desvio de linha média de 4 mm e mordida cruzada do lado direito.

Fig. 5 – Fotografia inicial intrabucal, lado esquerdo.

Fig. 5 – Fotografia inicial intrabucal, lado esquerdo.

Fig. 6 – Fotografia inicial intrabucal, lado direito.

Fig. 6 – Fotografia inicial intrabucal, lado direito.

Os exames complementares utilizados, inicialmente,foram uma radiografia panorâmica e uma telerradiografia. A radiografia panorâmica revelou extensa perda óssea alveolar generalizada; comprometimento periapical do segundo molar superior esquerdo e segundo molar inferior esquerdo; assimetria entre as cabeças da mandíbula; e mineralização na área do processo estilóide e/ou complexo do ligamento estilomandibular–estilo-hióideo. A telerradiografia confirmou o padrão facial dolicoprosopo, a redução da altura facial inferior e a posição da mandíbula em relação à maxila.

Mediante os resultados apresentados pelo exame subjetivo (anamnese), exames objetivos (exame postural, exame facial, exame funcional e bucal) e exames complementares, estabeleceu-se o diagnóstico de mordida cruzada unilateral posterior, por desvio de posição da mandíbula, associada à disfunção temporomandibular (DTM). As duas hemi-maxilas, embora apresentassem atresia transversal, não tinham crescimento assimétrico (Fig. 7).

Fig. 7 – Mudança de postura mandibular induzida, centrando a linha média. Observar a oclusão topo-a-topo na região posterior, tanto do lado direito quanto esquerdo, e a mordida aberta anterior.

Fig. 7 – Mudança de postura mandibular induzida, centrando a linha média. Observar a oclusão topo-a-topo na região posterior, tanto do lado direito quanto esquerdo, e a mordida aberta anterior.

O prognóstico é extremamente desfavorável, levando-se em consideração as seqüelas da má oclusão, a idade da paciente, os comprometimentos dentários e periodontais, os problemas sistêmicos e a disfunção temporomandibular.

Foi proposto à paciente, inicialmente, o tratamento por meio de aparelhos ortopédicos funcionais com o intuito de melhorar os sinais e sintomas da disfunção temporomandibular e, concomitantemente, melhorar o problema oclusal. Antes do início do tratamento, a paciente foi esclarecida sobre a limitação do tratamento em decorrência dos resultados apresentados pelos
exames de diagnóstico. Além disso, ela ficou ciente da necessidade de tratamento endodôntico, restaurador e protético necessário para a reabilitação final.

Tratamento

Antes da moldagem para a confecção de modelos de trabalho para a construção do aparelho ortopédico funcional, realizou-se desgaste nos caninos superiores e inferiores; incisivo lateral superior direito; no incisivo lateral, primeiro premolar e segundo premolar inferiores direito. Como a prioridade inicial era o alívio da sintomatologia dolorosa e descruzar a mordida, o aparelho ortopédico funcional de escolha foi uma Pista Indireta Planas Simples (PIPS), com mudança de postura apenas vertical. A parte superior do aparelho com arco de Eschler ou de Progênie, molas frontais
tocando nos incisivos, mola em “S” nos caninos, pista e parafuso. A parte inferior com estabilizador nos caninos, apoio oclusal no segundo molar esquerdo e alça oclusal no segundo premolar direito, pista e parafuso. A ancoragem bimaxilar promovida pelo aparelho supriu, em parte, a perda de apoio decorrente da ausência de vários elementos dentais.

Após a primeira semana de uso diuturno da aparatologia, as dores na região da face direita cessaram. Dois meses depois da instalação do aparelho os estalidos diminuíram; neste momento, foi orientada a mastigar somente do lado esquerdo. As consultas para ajuste e acompanhamento do tratamento eram realizadas de 22 em 22 dias nos seis primeiros meses de tratamento; em seguida, passaram a ser de 30 em 30 dias. O parafuso superior foi ativado ¼ de volta, uma vez por semana; o parafuso inferior quase não foi ativado.

O uso da PIPS foi de 13 meses. Durante esse período, foram feitos concertos, trocas de acessórios, ajuste das pistas e reembasamento da parte superior do aparelho. Com o uso da PIPS, em todo este tempo, obteve-se um crescimento transversal da maxila favorável e um avanço na posição dos incisivos centrais e laterais, abrindo ainda mais os diastemas presentes. A redução do desvio de linha média foi também um resultado positivo. A possibilidade de mastigação do lado esquerdo, o desaparecimento do quadro de dor e dos estalidos se deveu, principalmente, à melhora
na posição da mandíbula e, conseqüentemente, das cabeças da mandíbula dentro da cavidade articular, diminuindo, assim, o trauma sobre os tecidos intra e extra-articulares. Melhora expressiva também foi observada na face, com aumento da altura facial inferior, redução da hipertonicidade do masseter direito e diminuição da assimetria entre os modíolos (região de inserção de vários músculos peribucais, localizada na comissura labial). Todos estes resultados positivos contribuíram para o aumento da auto-estima da paciente e melhora do quadro depressivo.

No décimo quarto mês, após o início do tratamento, foi instalado um SN11 (Simões Network 11)1 com mudança de postura (MP) procurando centrar a linha média, diminuindo-a na MP em 2 mm. A parte superior consistiu em arco de Eschler, molas frontais tocando nos incisivos, pista, aleta vertical de acrílico do lado esquerdo e parafuso; não foram colocadas molas em “S” nos caninos devido à falta de ancoragem para ação destas. A parte inferior com estabilizador nos caninos, apoio oclusal no segundo molar esquerdo e alça oclusal no segundo pré-molar direito, pista e
parafuso (Fig. 8).

No decorrer deste período de uso do SN11, o pai da paciente veio a falecer o que fez com que a depressão voltasse e, neste momento, houve uma redução no uso da aparatologia. Embora fossem esperados, em virtude da diminuição do uso do aparelho e desequilíbrio emocional, os sinais e sintomas da DTM não reapareceram; a paciente relatou apenas algumas dores de cabeça de intensidade moderada e inconstantes. O uso do aparelho denominado de SN11 permanece até hoje, embora já tenha sido trocado em decorrência da diminuição da adaptação devido ao uso, quebras e ativações.

Até o momento, a paciente encontra-se em tratamento com uso de aparelho ortopédico funcional, sem sintomatologia dolorosa e estalido. Permanece mastigando somente do lado esquerdo, como foi orientada. Ao longo de todo o tratamento não houve necessidade de tratamento fisioterápico nem medicamentoso. Houve redução considerável na assimetria facial (Fig. 9) e melhora na situação da oclusopatia (Figs. 10 a 12). No final do tratamento, espera-se corrigir o desvio de mandíbula e a mordida cruzada obtendo, assim, uma oclusão funcional e estável e, conseqüentemente, impedir o agravamento da disfunção temporomandibular.

Neste caso em questão, o tratamento ortopédico funcional seria a melhor opção terapêutica em relação ao tratamento ortocirúrgico, pois a expansão rápida da maxila iria favorecer somente o descruzamento da mordida, mas não a correção do desvio da mandíbula, provavelmente a principal condição agravante da DTM. Ou seja, com o tratamento ortocirúrgico a mordida cruzada seria corrigida, mas camuflaria o desvio de mandíbula, que permaneceria.

Discussão e Conclusão

Embora não haja consenso na literatura a respeito da etiologia primária da DTM, analisando o caso descrito, há forte evidência do fator oclusal como um dos principais elementos no desenvolvimento dos sinais e sintomas desta patologia. Além da condição oclusal, mordida cruzada e perda de vários dentes, a paciente em questão apresentava um quadro de depressão e parafunção do tipo bruxismo os quais também estão relacionados às disfunções da articulação temporomandibular.

A diminuição dos sinais e sintomas, observada dias depois da instalação do aparelho ortopédico funcional, ocorreu por causa do relaxamento, principalmente, dos músculos pterigóideo lateral, pterigóideo medial, temporal e masseter. Além disso, a mudança de postura promovida pela PIPS modificou a posição das cabeças da mandíbula, dentro da cavidade articular, diminuindo, assim, a pressão intra-articular do lado direito – lado da mordida cruzada em que a cabeça da mandíbula encontrava-se, quando em posição de intercuspidação máxima (PIM), deslocada para cima,
para traz e para fora (lateral).

Optou-se por iniciar o tratamento com PIPS por ser um aparelho bioplástico que permite uma mudança de postura com levante vertical e liberdade total de movimentos mandibulares. O SN11 com Arco de Eschler foi escolhido, pois, além de ser bioplástico, consegue manter a mudança de postura a qual foi feita com muito critério, procurando centrar a linha média por etapas. O SN11, neste caso, bloqueia o desvio da mandíbula para o lado direito, lado cruzado. Com essa nova postura mandibular, o estímulo proprioceptivo patológico, devido à oclusopatia é anulado e um novo
estímulo, agora fisiológico, é criado com o intuito de se chegar a uma condição de equilíbrio.

Dentre os fatores relacionados à etiologia da DTM, apresentados pela paciente, fica difícil destacar, dentre eles, qual seria o que estaria influenciando mais na evolução da disfunção das ATMs. Será que, se não houvesse quadro depressivo e bruxismo, não haveria disfunção temporomandibular? Ou, caso estes estivessem presentes e a oclusopatia ausente, haveria disfunção mesmo assim? São perguntas difíceis de serem respondidas uma vez que são múltiplos os fatores relacionados à DTM e dentre eles podemos destacar o padrão facial, lembrando que a paciente relatada neste caso tem um biótipo dolicoprosopo (ou braquicéfalo). O mais importante é a resolução do problema do paciente que procura tratamento. Quando não é possível a remissão por completo, em decorrência da complexidade e limitação do caso, pelo menos tentar, por meio da terapêutica, amenizar os sinais e sintomas e prevenir o agravamento da condição patológica.

A Ortopedia Funcional dos Maxilares, mediante suas características e princípios terapêuticos, é uma opção de tratamento para os casos em que a condição oclusal está contribuindo para o desenvolvimento ou o agravamento de problemas nas ATMs; seja em casos de intervenção em crianças, jovens ou adultos.

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